sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

CAPÍTULO I - A morte como recompensa


CAPÍTULO I - A morte como recompensa
            Se você estava visitando a Ilha de Argos na virada do primeiro milênio, deve ter passado por maus bocados. As coisas não andavam muito boas para a população de lá há tempos. A ilha nunca esteve cercada por um mar de rosas. Não é à toa que o oceano a sua volta era chamado de Mar do Terror. Mas, convenhamos, numa época em que caravelas singravam os mares e davam de cara com piratas ou monstros marinhos, qualquer mar era merecedor desse nome. Você já deve ter percebido que não estamos falando de uma história em nosso mundo, e sim de uma num mundo distante. Uma terra que você já deve ter visto em sonhos ou livros, uma terra de magia, heroísmo, elfos, fadas, seres fantásticos e dragões. E é sobre dragões que eu gostaria de falar, mas antes, vamos voltar à Ilha de Argos, um pequeno pedaço de rocha dentro do grandioso Império de Titânia.


GPS: "Você está aqui."

            Aquele foi um grande dia para Argos. Foi o dia em que o déspota chamado Ricardus I, que se auto-proclamou Barão da região, enfrentou a resistência local, um grupo liderado por guerreiros, ex-camponeses, magos e membros do clero. Já não era de agora que o Barão enfrentava problemas com esses rebeldes. O primeiro deles a criar dor de cabeça foi Telus, um anão que trocou a enxada por uma espada afiada. Filho de estrangeiros, Telus nasceu ali em Argos, e era constante alvo de piadas por ser parte de uma minoria. Sem trocadilhos.
Localizada ao afastado leste da capital do Império, Argos era ocupada por belos vilarejos e ricos senhores de terras que pouco ostentavam tal riqueza. De natureza agrícola, possuía belas pastagens, rios e vilarejos. O que estragava era o povo... Culturalmente, Argos era conhecida por ser uma ilha de população um pouco intolerante para com os semi-humanos e agora, veja você, encontrava justamente num deles, a sua esperança de liberdade.
– Vê a ironia do que está acontecendo, anão? – provocou o Barão enquanto trocava golpes de espada com Telus, que, em silêncio, lutava pela própria vida e pela Ilha de Argos. Naquele momento, ele lutava mais pela sua vida do que pela ilha. – Enquanto você sangra por esta ilha, os habitantes mal falam com você ou com seus aliados na rua!
Telus manteve a concentração, sem responder às provocações. Existiam verdades no que o tirano disse e elas cortavam tanto quanto o aço. Sim, estamos no meio de um duelo. Aliás, no meio de um batalha travada dentro de um vulcão extinto entre o exército do Barão e a milícia local liderada por Telus.
– Todo mundo PRO CHÃO!!! – gritou uma voz com um leve sotaque estrangeiro ao fundo. O grito foi seguido por uma série de pequenos raios elétricos luminosos que cortaram o ar, atingindo o peito do Barão e separando os dois oponentes. E com uma armadura que o cobria dos pés a cabeça, incluindo seu misterioso rosto, a eletricidade envolvida deve ter feito um estrago e tanto.
É, Telus não estava sozinho. Havia guerreiros e feiticeiros com ele, mas a cortesia destes raios foi de Augustos Maximus Khosta, um mago estrangeiro de pouca idade, mas de muita vivência que ali estava em causa própria. Sua história é mais complicada, então deixarei para mais tarde.
– Não parem de atacar, continuem pra cima deles! – gritou o anão que fora jogado no chão com o impacto dos raios elétricos de Khosta refletidos na armadura do Barão.

Era uma luta desigual, convenhamos. De um lado, um grupo com pouca ou nenhuma experiência em luta armada liderado por um anão de precoces barbas e cabelos grisalhos e pouca ligação com aquele povo. Com ele, uma maga chamada Miranda, um ex-centurião alcoólatra, dois elfos, um feiticeiro estrangeiro e um guerreiro novato que mal saíra das fraldas e já vestia cota de malha.
Do outro lado, um fidalgo descendente de uma antiga linhagem de nobres que até há pouco tempo se mostrava decadente. Pelo menos até o dia em que se aliou a um bruxo vindo de terras distantes que, graças à magia negra, lhe conseguiu um exército de Armaduras Fantasma, um bando de guerreiros sobrenaturais com pouca vontade própria e que respondiam apenas ao seu comando mental. Em pouco tempo, se auto proclamou barão regente da ilha, recrutando escravos para seus campos de mineração e outros atos mundanos. Como combater seres que nada temiam e que talvez nem estivessem vivos?
Saltando por cima de todos, um elfo apareceu com a resposta atacando as Armaduras Fantasma com uma rede.
– Se não podemos matá-los, podemos prendê-los! – disse Cronus, um elfo nascido nas distantes terras de Álfheimr, a meca élfica deste lado do continente.

Cronus não era seu verdadeiro nome. Era um pseudônimo que adotou quando saiu de sua terra natal para se aventurar no mundo dos humanos. Com seus quase 300 anos de vida, Cronus já andava pelo mundo há vários invernos e primaveras, sem ter feito laços com ninguém e nem perdido sua inconseqüência juvenil. Há seis meses chegou à Ilha de Argos, sem desconfiar da aversão que a população dali tinha para qualquer um que não fosse igual a eles. Foi justamente quando estava sendo perseguido por uma turba local que acabou trombando com estes aventureiros. No momento, lhe pareceu seguro estabelecer estes laços e ajudá-los, seja lá no que estivessem fazendo. Mas amanhã, quando a graça aqui acabar, quem sabe, já esteja de partida para algum país longínquo. Elfos podem viver até mil anos, mas humanos morrem rápido. Melhor não se apegar muito a eles.

Como eu disse antes, esta batalha aconteceu dentro de um vulcão, mais precisamente dentro de uma grande rede de cavernas usadas como campo de mineração. Enquanto o grupo batedor fazia este ataque surpresa, um jovem chamado Peter Paul e a maga Miranda corriam para dentro das masmorras para tentar tirar de lá os escravos que ali trabalhavam.

Peter era um mascate que assumiu sua incompetência em tentar vender cacarecos a estranhos e resolveu trocá-los por uma espada só para não perder o investimento. Mas nestes primeiros dias de aventura ele talvez seja mais lembrado como o guri que tirou Telus da toca. Os dois se conheceram numa taberna, um ótimo local para fazer amigos ou para ser morto numa briga. Esta taberna ficava em uma pequena vila nos arredores de Vidith, capital da Ilha de Argos. Telus, neste dia, ouvia atentamente a história de um velhote que falava sobre o roubo de algumas jóias da Igreja. Graças a sua perseverança, o ex-mascate conseguiu convencer o anão a pegar esse bico e partir nesta pequena cruzada para achar os artefatos. Alguns dirão que a recompensa falou mais alto na decisão de Telus, mas vocês não ouvirão isso de mim.

– Afastem-se das grades! – disse Miranda aos escravos, pouco antes de arrebentar as correntes com pequenos raios luminosos que saiam de suas mãos. Para aqueles homens maltratados pela vida, a visão da maga de pele morena e cabelos cacheados castanhos, quase avermelhados, foi angelical.
Havia ali uma única armadura fantasma com a missão de guardar os escravos e cabia a Peter o trabalho de distraí-la enquanto Miranda tirava os escravos lá de dentro. A operação teve que ser rápida, pois estavam em desvantagem. A maga levou menos de cinco minutos para abrir as trancas e levar os mineradores ali presos até uma saída lateral que dava para fora das cavernas. Foi tempo suficiente para ela voltar e ver Peter lutando com a armadura trancado dentro de uma das celas:
– Peter Paul? Mas como vocês ficaram presos aí?
– Presos? Droga, eu fiz isso de novo! – resmungou o garoto ainda se defendendo dos golpes da armadura fantasma.
– Afaste-se das barras! – gritou a maga que, com brilhos dos dedos, manipulou energia e projetou novamente pequenos dardos mágicos luminosos na tranca. Dentro da cela, Peter conseguiu vantagem graças a sua pequena estatura. Em um espaço restrito como aquele, Peter pôde atingir a armadura várias vezes sem ser ferido. Para a armadura de dois metros de altura, era como mergulhar num barril para tentar pegar um peixe escorregadio, se é que alguém já tentou fazer algo assim.
– Pra fora, Peter! – disse a feiticeira, pouco antes de trancar a armadura lá dentro.
– Obrigado... Agora vamos lá pra cima ajudar os demais.
E eles precisavam mesmo de ajuda. Em vantagem numérica, as Armaduras Fantasma faziam uma barricada entre o grupo invasor e o campo de mineração subterrâneo, protegendo o Barão e isolando Telus dos demais. Entre estes “demais”, estava o jovem ex-centurião Tião Calistratos, o “Alambique”, único guerreiro com alguma experiência em batalha e que teria sido bem mais útil se não estivesse completamente bêbado fazendo jus a seu apelido.  Mesmo assim, com a truculência que só aqueles que vivem escravizados pelo álcool possuem, ele abriu caminho entre as Armaduras para a elfa Lerandra passar com sua espada.
Telus, caído, viu a elfa pular de espada em punho sobre o inimigo e lembrou quando a viu pela primeira vez em ação.

Foi justamente após ser convencido por um – incansavelmente chato – Peter Paul a largar sua vida de fazendeiro e se tornar um aventureiro. Sua primeira missão foi achar a tal jóia roubada de uma comitiva religiosa ali mesmo na ilha. Os dois seguiram sozinhos a pista dos ladrões até os escombros de uma vila abandonada de onde, para surpresa da dupla, saíram quatro esqueletos vivos. Era a primeira vez que qualquer um dos dois tinha visto algo tão bizarro, mas, mesmo assim, partiram pra cima. Afinal, que alternativa tinham já que estavam encurralados nas ruínas? Sem habilidades com espadas, os dois até que se saíram bem para “aventureiros de primeira viagem”, mas o golpe decisivo veio da elfa Lerandra que, de cima de uma árvore, cravou uma flecha no crânio do esqueleto líder. Os esqueletos fugiram e a dupla recuperou o artefato. Aquele foi um bom dia.

Mas este era um dia diferente. Telus se levantou, determinado a retribuir o favor à elfa, muito mais por orgulho do que por cavalheirismo. Assim o Barão se desdobrou numa luta armada com os dois não-humanos, reafirmando a ironia de ter a soberania de uma ilhota racista como aquela ameaçada por dois desiguais.
Peter Paul e Miranda se juntaram o mais rápido que puderam aos demais e reforçaram a ofensiva em cima das Armaduras. Naquele campo de mineração subterrâneo, havia cerca de quinze delas, todas idênticas, cercando seu mestre e seus dois oponentes. Do lado de fora do cerco, Alambique, o elfo Cronus, Peter e a Miranda, munida de seu cajado, tentavam não perder terreno. Em algum lugar, estrategicamente escondido atrás de alguma barreira, estava o matreiro mago Khosta, em alguma atividade desconhecida para os demais.
– Como é, Khostinha, não vai fasher nada pr´ajudar? – Reclamou Alambique enquanto apanhava e batia nas Armaduras.
Alheio à batalha, Khosta recolhia platina do chão e, se alguém ali perto estivesse, ouviria dele vários resmungos do tipo “Se esse pinguço me chamar de Khostinha mais uma vez, juro que vou me aliar ao Barão! Juro!”.
A mina era escura e úmida, seus únicos focos de iluminação eram as lamparinas nas paredes. Localizada dentro de um vulcão extinto chamado Ghor, foi cavada há vários anos por exploradores em busca de prata até ter esgotado todo seu potencial há 10 anos.  Mas, para a surpresa dos moradores da vila ao lado, foi reaberta logo após o Barão ter tomado as rédeas do governo. E a cada dia, chegavam mais escravos, que de lá só saíam mortos de tanto trabalhar. Escravos comprados são um investimento caro, mas escravos roubados são dispensáveis.
Existiam duas rotas de cavernas que ligavam o interior do vulcão à superfície. Uma foi usada nesta recente fuga de escravos e a outra foi usada na entrada de Telus e seu bando. E é desta segunda rota que os que lá em baixo estavam lutando puderam ouvir uma canção entoada por uma melodiosa voz feminina.
Aos poucos a canção ressonava nas paredes de pedra ecoando e preenchendo toda a caverna. Quanto mais esta canção de inspiração era ouvida, mais suas palavras conseguiam ser entendidas e maior se tornou o sentimento de segurança entre os rebeldes. Um sentimento de que isso iria dar certo. De que eles estavam ali para vencer e de que nada iria convencê-los do contrário. De repente, se tornou mais claro para eles que as Armaduras atacavam sem estratégia alguma. Eram movimentos desprovidos de malícia humana. Elas apenas miravam o alvo móvel a sua frente e tentavam acertá-lo. Cronus aproveitou e usou sua agilidade para passar pelas Armaduras, evitando seus golpes descoordenados. E, uma vez do lado de dentro do cerco, atacou pelas costas as Armaduras. Afinal não era traição, já que estavam vazias. Não é?
O otimismo desta voz que vinha lá de fora da caverna e que cantava como um anjo já fazia parte da rotina deste grupo. Ela pertencia a uma freira chamada Galiléia e, se me permite interromper mais uma vez esta batalha para lhe falar sobre ela, eu agradeceria.

Foi nas mãos de Galiléia que Telus e Peter Paul entregaram aquele artefato recuperado em sua primeira aventura. Lembram? E foi graças às suas mãos de cura que tiveram suas cicatrizes amenizadas após a briga com o “Quarteto Esqueleto”. Também lembram, não é? Gentil, como sempre, Peter Paul se ofereceu para escoltar a nova amiga de volta a sua cidade. E, é claro, “voluntariou” Telus nesta gentileza. Assim seguiram juntos, na época, até a igrejinha daquele lugarejo perto da capital onde Telus e Peter se conheceram. Lá só encontraram uma vila devastada e corpos de mulheres e crianças empilhados numa adega. Foi um choque para os três que haviam deixado o local há tão pouco tempo. No chão, várias pegadas, todas iguais, alertaram para sua única pista: o exército de Armaduras do auto-proclamado Barão marchou por ali e recolheu todos os homens saudáveis para suas minas. Era a vila de Telus que, se ali estivesse, provavelmente somaria na lista de escravos. Assim, o Barão, sem sequer suspeitar, ganhou três novos inimigos.

As memórias desses dias longínquos surgiam como lampejos a cada golpe ou a cada visão do companheiro lutando numa causa comum. Na batalha, era fácil lembrar pelo que lutavam e porque estavam no vulcão de Ghor, arriscando suas vidas. Na tentativa de ganhar terreno, Alambique, munido de uma velha espada que trouxe dos tempos em que servia nas legiões, acertou com dois golpes seguidos uma armadura, jogando a montanha de aço no chão. Não havia muita satisfação em “matar” uma dessas criaturas. Assim que atingia solo, a armadura desmontava por inteiro, deixando vapor de enxofre no ar, como se nem estivesse ali estado.
Cronus e Peter seguiram mantendo a dobradinha e conseguiram, atacando pelos dois lados, neutralizar mais duas Armaduras. Foi ali que Miranda viu a chance para avançar mais:
– Alambique, fique de olho na minha retaguarda!
– Eu shhempre fico, Mimizinha!
Ignorando os delírios de grandeza do ex-centurião, Miranda começa um novo feitiço. A maga nunca gostou da presença de Alambique dentro do grupo, mas àquela altura não tinha muita escolha. Um aliado bêbado, mesmo vendo dobrado, ainda tinha 50% de chance de acertar uma das imagens que via.
Dentro do cerco, Telus atacava como um cão atrás de um naco de carne. Mas investida após investida do anão foram repelidas com golpes do Barão, que também devia estar suando dentro da armadura na tentativa de se desvencilhar da elfa.
– Quem mandou vocês aqui? Quem pagou para que me incomodassem por quatro meses consecutivos? – disse o nobre.
Telus respondeu com o silêncio de um bom golpe de espada, mas a elfa foi menos contida:
– Por que acha que alguém se daria ao luxo de nos pagar por algo que faríamos de graça?
O Barão nada respondeu, o que para Telus significava que ele realmente devia estar suando debaixo daquela armadura.
Khosta saiu detrás dos escombros onde estava escondido a tempo de ver uma cena surpreendente: vários camponeses mortos em ataques das forças do Barão. Guerreiros, pescadores, padres e até crianças avançaram em bando pra cima da barricada.
– Que espécie de mandinga é essa??! Necromancia? – falava Khosta com seus botões.
Alambique, Peter e Cronus se surpreenderam mais ainda quando os moradores passaram por Miranda que, concentrada, ordenou a eles que avançassem em direção as Armaduras.
– Ah, já entendi... São ilusões para confundir as Armaduras. Mas será que elas vão entender que essas eram suas vítimas? – cochichou Khosta no ouvido de sua mestra, Miranda.
– É só uma liberdade poética – respondeu a bela maga, ainda concentrada.
– Gosto de sua classe – disse o aprendiz, que em seguida gritou aos guerreiros – Taí a deixa que vocês precisavam, seus pangarés! Aproveitem a confusão e PEGUEM ESSE BARÃO DE ARAQUE!
Os três batedores não pensaram duas vezes até avançarem entre as ilusões e as Armaduras Fantasma. Era a hora do pagamento por tudo o que haviam passado e cada um deles tinha uma cicatriz que lembrava algum momento que os levou até aquele dia.

Peter, por exemplo, se lembrou de quando ele e Telus, ainda procurando por pistas que levassem ao Barão, acabaram perseguidos por uma cobra gigante. Aliás, Peter sempre achou que aquela era uma ilha muito estranha. A cada esquina, algo ou alguém tentava atacá-los, sem mais nem menos, como se os conhecesse de longa data. Com tanta hostilidade, ele se dizia admirado do Barão não ter encontrado nenhuma resistência até agora. Concluindo, foi nesta fuga que acabaram tendo que escalar uma muralha, vindo a se espatifar do outro lado, bem em cima da guarita de um centurião que ali dormia completamente bêbado. Assim conheceram “Alambique”, que acabou perdendo o emprego. Foi um momento embaraçoso para todos. Até para a cobra.
Mas o alcoolizado centurião acabou sendo útil naquele dia. Falando pelos cotovelos, contou que fazia a guarda do castelo onde morava o Velho da Torre, um sábio ancião com quem todos os nobres vinham se consultar. Era a chance de fazer um aliado poderoso contra o Barão.

– Petsher Paul, você vai pela direisha e vocês elfos vão pra eshquerda! – Disse Alambique partindo com a espada em punho.
– Elfos? – perguntou Cronus. – Mas só tem eu de elfo aqui!
– Não esquenta, ele lembrar o meu nome e saber que você é um elfo já é uma grande conquista! – respondeu Peter.
Divindo-se em três, eles avançaram em direção ao Barão até que um deles, o elfo Cronus, foi surpreendido pela mordida de um lagarto pendurado numa das estalactites acima deles. O lagarto tinha os olhos avermelhados e um colar de metal no pescoço, visão que trouxe outra dolorosa lembrança a Peter.
           
              Uma lembrança que envolvia a dificuldade que teve em conseguir uma audiência com o velho sábio. Naqueles tempos de insegurança, todos os fazendeiros já tinham perdido mão de obra valiosa nos ataques do Barão. Pacifista, o sábio aconselhava-os a negociar essa mão de obra de volta. Ir contra as forças dominantes ali não era uma ação que tivesse rendido qualquer resultado até aquele momento. Quando Peter e Telus chegaram lá, deram de cara com um senhor bem enrugado, de semblante cansado e vestes simples. Simpático, ele lhes ofereceu de comer e beber e perguntou como poderia ser útil. Peter contou que procuravam uma maneira de depor o Barão e neutralizar seu exército. Sem ser rude, o ancião disse que essa era a pergunta de oito entre dez pessoas que ele atendeu naquele dia. Disse que não queria mandar ninguém para a morte e que, enfrentar o Barão, mesmo sabendo sobre seus segredos e fraquezas, ainda assim seria a morte certa. “Segredos?” perguntou Peter na época ao mesmo tempo que Telus resmungou sorrindo: “Fraquezas?”.
              O ancião então lhes falou sobre o castelo abandonado de Irys, uma fortaleza da família do Barão. Para lá é que foram mandadas as armas e armaduras que logo depois foram usadas por seu exército sobrenatural. Mas aquele era um lugar amaldiçoado, não era para aventureiros ou fracos. Em suas palavras, “existe o dia de lutar e o dia de planejar”. Saindo dali com aquelas informações, pareceu claro o que deviam fazer. Próxima parada: Castelo de Irys.

            Cronus ainda estava preso na bocarra do lagarto que se via agarrado à estalactite como se dela fizesse parte. Nem Alambique era alto o suficiente para acertar a criatura com a espada, então resolveu procurar algo na mochila.
            Ah... tenho um cutelo enferrujado aqui... posho tentar acertá-lo com issho...
            NÃO! Nem pense em jogar esse troço em mim, seu bebum!!! – Gritou o elfo, sacando uma adaga élfica e tentando acertar o lagarto. Lá de baixo Peter gritou: “O colar! A coleira de ferro! Tenta arrancar!”.

A poucos metros dali, Khosta cochichava para Miranda:
– Consegue ver daqui aquelas duas vigas? São vigas de sustentação. Se eu acertar com um raio bem dado uma delas acho que consigo despejar boa parte do vulcão na cabeça dele.
– Ficou louco, aprendiz? Nós seremos soterrados! – respondeu Miranda.
– Não se partirmos em retirada antes! O Barão está em vantagem numérica, não vai estranhar a gente sair de repente. Para que ficar batendo nessas Armaduras até amanhã quando podemos soterrá-las de uma só vez? Na pior das hipóteses vamos acabar com sua mina ilegal e pronto!
– Bom, os escravos já saíram todos. Então capriche na pontaria. TELUS, VAMOS BATER EM RETIRADA! – gritou a maga.
– TÁ MALUCA?!? Nunca chegamos tão perto...
Foi a última frase de Telus antes de ser desarmado com um golpe do Barão que ainda tentava sair sem dar as costas a Lerandra. Alguns segundos antes do grito de “retirada”, Cronus conseguiu arrebentar o colar de platina do lagarto, que finalmente o soltou lá de cima. O ferimento no pescoço do elfo soltava sangue como uma mangueira, o que facilitava a decisão de Peter Paul:
– Telus, Lerandra! Vamos dar o fora daqui! Cronus está ferido!
– Leve o elfo na frente, eu vou quando Lerandra vier! – Respondeu Telus, ainda procurando sua espada no chão para continuar a briga. E lá atrás, Khosta começou a conjurar seu feitiço de destruição.
Alambique, enquanto abriu caminho entre as Armaduras e as ilusões de Miranda, perguntou:
– Pete, como voscê shabia do colar?

Peter, amparando Cronus nos ombros, não teve fôlego nem tempo para responder, mas sabia bem porque teve esse palpite. No dia seguinte em que falaram com o Velho da Torre, os dois partiram até o outro lado de uma cadeia de montanhas que levava à antiga fortaleza da família do Barão. Um terreno difícil e íngreme como qualquer caminho para uma fortaleza. Essa era a ideia, afugentar inimigos. Mas lá chegando, não encontraram nenhuma resistência externa, e sim pegadas idênticas às encontradas na dizimada vila de Telus. Não foi preciso ser nenhum mateiro experiente para reconhecer as pegadas das Armaduras Fantasma. Elas tinham sempre o mesmo tamanho e profundidade. Que outro exército tinha soldados do mesmo calçado e peso? Lá dentro, só as tochas podiam mostrar algo. O lugar pareceu inabitado no momento, talvez a pista não fosse tão quente. Mas já que estavam ali, foram se embrenhando corredores adentro.
Quando já estavam para desistir, ouviram um pedido de socorro vindo de um andar abaixo. Procurando por passagens, entraram num grande salão fechado onde ouviram passos fortes vindo do corredor. A luz da tocha de Peter não podia alcançar o que vinha em sua direção, mas, pelo cheiro de ácido, Telus tinha um palpite bem aguçado: era um Dragão Negro! Se ficassem no salão, seriam encurralados. Melhor tentar a sorte fugindo pelo corredor. Foi que fizeram. Foi um segundo antes de correr que Peter viu que a luz da tocha fez um reflexo no metal em volta do que seria o pescoço do dragão. Mas só hoje ele se deu conta de que aquilo era uma coleira. Uma coleira de metal.

– Telus, Lerandra! Saiam daí agora! Khosta vai desabar o teto!!! – Gritou Miranda. A essa altura Miranda já tinha desfeito as ilusões, que exigiam muito de sua concentração, e se preparava para conjurar outra coisa. Peter passou por eles levando Cronus consigo e Khosta terminou seu feitiço:
– ...POTESTATEM TORPEDO TARGET MEAM VASTAAANT!!!
De repente, a caverna se iluminou com um raio elétrico que saiu das mãos do mago, atravessando o campo de batalha, pegando metade das Armaduras que agiram como pára-raios pelo caminho e acertando em cheio uma das vigas de sustentação. Foi a deixa para a retirada final.
Peter e Cronus já tinham saído e Alambique puxou Miranda, que tentava terminar seu último feitiço. Khosta, ainda com as mãos fumegando, sorriu vendo a destruição de longe e disse baixinho: “Cuidado com o teto baixo, Barão!”. Depois deu as costas dali com a sacola repleta de platina.

Ao lado de Telus, apareceu um brilho conhecido pelo anão. Era um círculo mágico de teleporte de Miranda. Um meio de fuga que teria sido muito útil naquela vez em que ele e Peter Paul fugiam de um dragão negro nos corredores do sinistro castelo de Irys.

É engraçado como certas coisas disparam gatilhos me nossas memórias mesmo em momentos cruciais como esse. Lembrou como se fosse hoje de terem fugido no escuro pelo tal castelo, ele e Peter Paul, até o fim de um enorme corredor quando deram de cara com uma parede de pedra. Encurralados, os dois se despediram da vida e partiram para cima do bicho com as armas nas mãos... e foram envolvidos por uma baforada de ácido antes mesmo de chegarem perto do dragão. Aquilo doeu.

– Vamos embora, elfa, a mina está desabando! – gritou Telus.
Lerandra estava ensandecida, mas parecia pronta para atender ao pedido do aliado. Porém, antes, não pôde resistir a uma última bravata:
– Aquela vila que você devastou não tinha apenas humanos, Barão, tinha elfos amigos meus!
E de trás do Barão uma voz trêmula respondeu:
– Sente falta deles? Mande-lhes minhas lembranças então!
Uma mão enrugada paralisou os movimentos da elfa e do anão, dando oportunidade para que o Barão pegasse a moça pelo pescoço e a levantasse a meio metro do chão.
– Vo-cê é o bru-xo... do Barão?
– Sim, anão. E você já deveria saber: “Existe o dia de lutar e o dia de planejar”.
Foi a última coisa que Telus ouviu antes do pescoço dela quebrar e o teto começar a desabar. Do lado de fora, os demais subiram correndo por uma das cavernas de acesso até verem a luz do dia.
– Ei, esperem, o desabamento parou, ele afetou só aquela parte em que estávamos. Vamos voltar pra pegar Telus e Lerandra! – gritou Peter, quando Miranda o interrompeu.
– Ainda não, vamos até lá em cima onde eu projetei a saída do teleporte!
Continuaram subindo todos até que, lá fora, avistaram os escravos mineradores libertados, um círculo mágico de luz criado por Miranda se fechando e, ao lado dele, Telus, coberto de areia e cascalho... segurando Lerandra morta em seus braços.

Continua... (Claro)

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